Tudo tão provisório, Rose. Hoje encontrei nossas cartas, os
poemas trocados no escuro da rua. Onde você estaria neste mundo? Por que não te
encontro em lugar nenhum? De nós duas apenas uma foto com o sabor dos anos
oitenta. E ainda guardo um guardanapo com escritas tortas, versos da nossa
última vez num pé sujo. Por isso preciso andar todos os dias para tentar juntar
estes fragmentos que também não me consolariam mais da perda da alma amiga.
Tudo tão intrigado em 86, uma mola de suspensão, uma ampulheta quebrada, um
país se abrindo, mas não para nós, esquecidas de tantos e no chão de um alçapão
de colher mulheres. Pois veja, essa minha roupa íntima, por exemplo, ela está
muito bem surrada, vem sendo amaciada pelo meu sexo e vive desses contatos
provisórios com minha mais doce e ácida notícia, minha pertença de mulher, uma
mulher desconhecida das outras. Perdoem, elas não sabem de nós. São puras e
inocentes, mamaram nos peitos de outras mães puras e inocentes e ainda tiveram
boas escolas. Minha calcinha amaciada de algodão é minha poesia íntima e
diária, longe daquele nome coletor que nos ordenava a costura de peças para
reposição das vaginas de moças que se julgavam tão esclarecidas sobre nós, mas
que nunca pisariam em nossos territórios – por medo, vergonha ou pelos dois.
Pobres moças envergonhadas. Perdoem, elas não sabem de nós, Rose. Não sabem a
metade da fruta que se pode sorver.
E lembro que eu e Rose, debruçadas sobre a janela, ficávamos juntas fumando um
baseado. Rose sim sabia onde escondê-lo. Ríamos do cheiro, porque passado pela
revista das guardas, fumávamos outras tantas intimidades. A pele, erva doce,
cabelos pubianos. Fumávamos uma cigarrilha e íamos para o disfarce, a
cigarrilha que eu comprava como criminosa ao invés do pão. A pele e osso como
deboche para as propagandas de alimentação saudável. Brincávamos as duas de
trocar palavras, como "nada, nós fumamos apenas umas cigarrinhas",
era como um tapa nos que nos condenavam por sermos mulheres da cidade baixa,
nós ali brincando de jardins nos ralos da periferia, preservando os reinos
vegetal, mineral e animal - para que as mais fortes crescessem robustas,
rosadas. Nossos corpos de cigarras, nossos pelos pubianos, os cheiros crespos
de nossos corpos, sabor de boca na nuca, o clitóris na boca um botão,
entumecido, para ser chupado e na língua o delicado se abrindo e fechando em
grandes, pequenos lábios de nossa linguagem de mistérios marinhos, molhados,
molhadas, liquefeitas. Era tudo tão fundo que gargalhávamos das pequenas
transgressões como loucas sedentas uma da outra. O salgado do abismo nos unia,
a solidão das migrantes, a ousadia das putas, a insensatez dos homens que nos
batiam e pagavam cervejas no fim do expediente. Sonhávamos em ser mulheres
barrocas como as da igreja onde não íamos rezar, porque éramos a escória
contagiada por todo tipo de subversão sem perspectivas de nada.
Conversávamos longamente sobre suicídio. Era um tema recorrente, porque éramos
feias e pobres, não tínhamos casa, vivíamos nas rodas dos inválidos, apanhando
de um ou de outro. Tínhamos direito ao suicídio, perguntei? Rose então me disse
que não, morreríamos em asilos ou manicômios, isoladas dos pequenos prazeres
terrenos, morreríamos de nosso próprio esgotamento de vida, amofinadas, e
morreríamos da crueldade disfarçada de bondade humana, outra violência.
Para Rose, suicídio era uma terra apartada, não nos era palavra familiar como
homicídio, morte a pauladas. Era um outro continente, como viajar para um país
de outra língua, comprar uma peça de consumo caro, um queijo fedido, pertencia
às que podiam comprar um bilhete sem volta.
Ao barulho do sinal, entre gargalhadas ainda, nosso efeito de pequena rebeldia
esfumaçava. Voltávamos de mãos dadas para o calabouço da colônia. Siamesas. Atemporais
também.
Antes de entrar, ela arrancou um hibisco e colocou no meu cabelo, suave na
brutalidade do corte. Arrancou um hibisco em pleno dia e o sol ainda iluminava
nossas caras!
Éramos barrocas.
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