sexta-feira, 29 de março de 2024
Rua selvagem (excerto 3) - Luís Vasconcelos
quinta-feira, 28 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 261 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
261
Este sentimento de desadaptação está costurado no meu âmago desde sempre. Lembro-me de, em criança, muito pequeno ainda, sentir-me deslocado no tempo, como se a cegonha tivesse ficado retida num engarrafamento de décadas provocado por uma paralisação dos serviços administrativos aéreos da Natalidade.
Esse atraso na entrega fez com que eu só visse a luz do dia bem mais tarde do que seria suposto. Pelo menos, valha-nos isso, o tempo de traslado é independente do de gestação, caso contrário eu teria nascido mais velho do que a Sé de Braga.
Tirando esse detalhe do desacerto temporal, não tenho mais nada a colocar no livro de reclamações. Os movimentos de rotação e translação dão-me os dias, as noites e as estações. A gravidade não me deixa flutuar – isso é óptimo para quem tem vertigens -, o céu varia entre o azul e os tons cinzentos, o mar anda entretido com os seus humores e marés, tanto a fauna como a flora são incríveis. Enfim, é tudo tão perfeito que a única coisa que posso reclamar da vida é estar aqui no tempo errado.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 6) - Geórgia Alves
quarta-feira, 27 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 260 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
260
Por vezes o fogo da vontade perde vigor e transforma-se numa ténue faúlha, que só não se extingue porque nos momentos de alento invertido, sobram ligeiras ondas de resiliência que, embora em banho-maria, impedem que o sentir seja obliterado por uma brisa de fraqueza.
Tal como os arco-íris, os ápices débeis da mente são miragens que tentam grudar-se ao céu do raciocínio, na esperança de ganhar protagonismo, como fossem autores de lavras plagiadas, a desfilar nas sombras de falsas passadeiras vermelhas, sem holofotes nem comendas.
Esses instantes frágeis, quando bem identificados, são manuais empíricos, do lado negro do ser, que ajudam na compreensão dos extremos da personalidade.
Cabe a cada um dar uma utilidade holística, ou parcial, ao aprendido – quando munidos de capacidade reflexiva e isenção de preguiça.
EMANUEL LOMELINO
Longevidade (excerto 6) - Renata Campos
terça-feira, 26 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 259 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
259
Há um abismo, criado propositadamente, que dificulta o acesso ao mais íntimo de mim, porque só a mim pertenço, só a mim me justifico, só a mim me cumpro.
Por muito que deduzam pedantismo, tomara cada um ver-se o centro do universo, qual astro com órbita personalizada, e poder acionar ou desligar, dependendo do sentir, a força gravitacional que permite a aproximação de outros corpos celestes.
Muitos usam expediente semelhante, no entanto, sempre subjugados ao engrandecimento material que os “atraídos” proporcionam.
O meu egocentrismo, consciente, é espiritual, intimista, irreversível, meu. A mais ninguém pertence, a mais ninguém é útil, a mais ninguém enriquece.
E, pasmem-se os desavisados, esta convicção prática jamais foi impeditiva dos meus contínuos altruísmos, dos quais tampouco alardeio ao mundo. Quem vê, sabe. Quem desconhece, ignora. E convivo bem com ambos os espectros, porque só a mim cativo.
EMANUEL LOMELINO
O Psicopata (excerto 2) - Daniele Barbosa Bezerra
segunda-feira, 25 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 258 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
258
Sinto que estou a derramar-me até ao extremo do vazio; até ao limite da sensibilidade; até à falésia da consciência, qual abundante cascata de coisa alguma.
Nestes dias em que liquidifico a minha existência deixo de ser corpóreo, liberto-me das emoções, abraço a vacuidade profunda e agrilheto os pensamentos no mais esconso subterrâneo.
Embrulho-me na agudeza protetora e segura do silêncio absoluto e deixo o meu espírito vazado deambular pela neutralidade do espaço.
Somente o nada consegue ser, em mim, o equilíbrio, a prudência, a sensatez, a razão, o tão desejado porto de abrigo.
EMANUEL LOMELINO
Entre céu e mar - Leila Medeiros
A moça da lagoa (excerto 2) - Marcos Coelho
domingo, 24 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 257 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
257
Há uma heterodoxia evidente no silvo melífluo da brisa que beija as folhas de uma árvore. É um ciciar da natureza; um aviso intimista, mas tão expressivo quanto os brados das ondas que esculpem os maciços rochosos. Contudo, mantemo-nos indiferentes.
Existe um discurso, nas vozes das tempestades, que passa despercebido a olho nu. É um código do ambiente; um sinal de alerta, tão dual como o ressonar de um vulcão adormecido na antecâmara do seu estrondoso despertar. Contudo, mantemo-nos apáticos.
Há uma oscilação atmosférica em todas as épocas como um entrelaçar festivo de quadras temporais. É um sussurro climático; uma advertência tão cadenciada quanto o degelo dos mais primitivos glaciares. Contudo, mantemo-nos passivos.
Existe um tempo que se esgota como uma ampulheta quebrada. É a noção de perenidade a extinguir-se como o Cretáceo. Contudo, mantemo-nos impávidos porque essas coisas só acontecem aos outros. Quais outros?
EMANUEL LOMELINO
Rua selvagem (excerto 2) - Luís Vasconcelos
sábado, 23 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 256 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
256
A turbulência dos dias não quer saber se o arco-íris é filho do sol e da chuva ou reflexo da cúpula que dá razão aos esfomeados terraplanistas.
De leste chegam uivos ogivados rugidos por gargantas mais inocentes do que gárgulas esquimós, enquanto, daquela janela aberta para o Tejo, ecoa uma voz de barítono com hálito de açorda e chamuça.
Nos carris do elétrico, encerados pela morrinha recente, deslizam saltos altos, “raios partam” e outros impropérios indiferentes às moedas, largadas à laia de piedade, no boné do humorado maltrapilho, que tem banca permanente no adro da igreja e um cartaz a informar: multibanco avariado.
Na porta da tasca sorvem-se ginjinhas espirituosas e lançam-se olhares – cada um com o seu significado – para os “camones” na esplanada e aos que passam de mochilas às costas e ansiosos por fotografar os azulejos quebrados das fachadas devolutas.
O céu anuncia o anoitecer precoce de mais um domingo e não há tempo a perder com notícias de Gaza ou Kiev porque é dia de clássico na tv e expulsão num reality show.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 5) - Geórgia Alves
sexta-feira, 22 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 255 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
255
Sou um leitor híbrido. Embrenho-me em romances, contos, filosofia, antropologia, história, ciências, crónicas, ensaios, prosa poética e poesia, como quem procura respostas a perguntas que ainda não fez.
Leio contemporâneos e antigos, essencialmente clássicos, com o objectivo de expandir os meus conhecimentos e, com isso, alargar horizontes e aperfeiçoar as minhas técnicas criativas.
Nessa fome por sapiência, mais do que ler, devoro livros atrás de livros, com plena consciência de que o estômago literário jamais ficará saciado.
No entanto, a conclusão mais relevante desta gula está no facto de que, das léguas de palavras lidas, tal como admitiu Adam Zagajewski, assimilei apenas “farrapos” de entendimento. O resto, sobra-me a esperança, um dia conseguirei compreender.
EMANUEL LOMELINO
Longevidade (excerto 5) - Renata Campos
quinta-feira, 21 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 254 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
254
Não há sol que ilumine os íngremes caminhos sombrios que o fado obriga a percorrer, sem desvios.
A luz dissipa-se a cada encruzilhada como se as copas das árvores fossem uma cortina fechada para o céu.
Os passos sincopados, numa lentidão desesperante, soam a desencanto e nada pode ser feito para que a viagem enalteça o espírito.
Olhar para trás também não se revela uma melhor opção porque a lonjura parece idêntica – senão maior.
Resta seguir adiante, na esperança de que, apesar do negrume, a caminhada possa ser feita com o mínimo de percalços e a vastidão subterrânea seja substituída por extensas planícies pintadas de verde e luz.
Pouco importa a escuridão dos dias quando o final do túnel ainda está à distância de uma vida inteira.
EMANUEL LOMELINO
O Psicopata (excerto 1) - Daniele Barbosa Bezerra
quarta-feira, 20 de março de 2024
Diário do absurdo e aleatório 253 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
253
A pele manchada, de múltiplas e árduas batalhas, exibe com sofreguidão todas as escaras acumuladas, que se sobrepõem umas às outras, como se a derme fosse um transporte público apinhado de gente em hora de ponta, quase sem espaço para respirar.
O cansaço e as nódoas negras empilham-se no corpo e, por mais forte que seja a nossa resistência, fazem esmorecer todos os ímpetos, todos os desejos, toda a força interior, como se as vontades, quais seres independentes de nós, quisessem tomar as rédeas da vida e levar-nos por caminhos diferentes, diametralmente opostos ao pretendido.
No pensamento aflora a ideia de mandar os planos às malvas, abdicar dos propósitos iniciais e aceitar, com resignação, a tristeza dos fados sem melodia, qual Sísifo conformado com a inevitabilidade da sua sorte.
Nestes dias, de moral fragmentada, encontro a salvação nas palavras dos sábios que habitam a minha cabeceira, ganho mais uns traços na bateria que me energiza e volto a acreditar que todo o esforço, sangue, suor, lágrimas e corpo inchado, levar-me-ão ao porto ambicionado.
EMANUEL LOMELINO